segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Infiltrações sensíveis, sutis e subversivas (Texto 2)

Apostamos na performance como um regime singular de produção artística estruturada pela execução de um ato, supondo a centralidade de um corpo (ou de vários) que realizam, praticam este ato. Nas infiltrações que propomos um desejo era apontado como uma necessidade: o suporte para elas deveria estar no corpo em ação, gerando situações/eventos. Falamos em investir e investigar estados corporais, nos performers e no público, sem postular uma separação a priori entre eles, já que estamos ambos coabitando o mesmo espaço, negociando dentro dele.

Para construir estas situações/eventos passamos a investigar ações que se destacassem por sua radicalidade. Radicalidade no sentido daquilo que atinge ou está na raiz. E para encontrar raízes, nos dedicamos a um estudo minucioso de especificidades. Escolhemos um contexto: o cruzamento das Ruas Conselheiro Laurindo, Alfredo Bufren e Treze de maio, no centro da Cidade de Curitiba; e um ponto de observação: o Café Fingen, localizado no coração deste cruzamento. Esse Café tem características especiais, o lugar parece uma intersecção do espaço público com o espaço privado, as mesas ficam quase na calçada, mas são “protegidas” por portas e janelas de vidros espelhados, que geram recortes e enquadramentos múltiplos, e possibilitam a quem está dentro observar quem está fora, sem ser necessariamente “notado”.

Nosso exercício começou com um mapeamento, durante meses nos propusemos a observar este contexto, suas propriedades materiais e imateriais, sua estrutura visível (espacial, arquitetônica), e invisível (as regras e relações que se estabelecem ali) bem como os atores, pessoas/corpos que compõem e constroem esse lugar. Conhecer este espaço e reconhecer nele brechas e possibilidades de infiltrações. A partir deste exercício de observação, as relações intersubjetivas, as regras tácitas de ação, as expectativas do possível se tornaram materiais para a criação artística, tão concretos quanto os engarrafamentos e os sinais de trânsito.

Passamos a discutir e questionar o potencial transformador e radical de toda e qualquer ação observada na rua ou proposta por nós. Como aumentar este potencial? Inverter a estrutura da ação, deslocá-la, antecipá-la, repeti-la, combinar esta ação a outras? Como estas ações podem conter em si, ou no conjunto delas algum estranhamento? Como propor uma intervenção extra-ordinária a este contexto, capaz de gerar repercussões concretas? Como gerar uma crise neste cotidiano? Algo que tivesse reverberações maiores, mais amplas e mais profundas, e que não fosse apenas lembrado como um “episódio carnavalesco”... Como proporcionar alguma experiência que modificasse para sempre alguma coisa ou alguém, ou alguma coisa para alguém?

Habitando este contexto diariamente, passamos a listar e experimentar ações que tivessem sua raiz aqui, mas que variassem para outras dimensões do possível. Passamos a buscar por ações quase possíveis, e a colecionar gradações delas: as possíveis (reconhecidas dentro da expectativa ou senso comum do “como atuar” neste tempo/espaço), as quase possíveis (estranhas mas quase aceitáveis), as impossíveis (aquelas que não deixam dúvidas sobre a sua existência fictícia ou manipulada), as fantásticas (aquelas que deixam dúvidas sobre a sua real existência).

Sentar em uma mesa de um café, pedir um café pequeno e um pão de queijo, é possível. Sentar na mesma mesa de um café, pedir um café pequeno e um pão de queijo todos os dias, durante três meses, na mesma hora e com a mesma duração, se torna quase possível. Uma quebra de tempo, de espaço, de permanência, de cor, de forma. Um disco riscado, uma meia furada, um som chiado, um déjà vu.

Essas ações quase possíveis, só se tornam visíveis e experienciáveis, se o seu quase for compartilhado. A permanêcia no café nos mesmos horários, durante meses, é compartilhada com a garçonete que está lá todos os dias, com o jovem que passa diariamente para ir ao trabalho na mesma janela e vê as mesmas pessoas, mas não para quem simplesmente passa por lá uma única vez. É necessário um compartilhamento de parâmetros, um pacto de visibilidade. Instruções, guias, mapas, chaves de percepção, possibilidades de conexões, proposições de ficções em meio ao que chamamos de realidade.

“A ficção é antes de tudo uma distribuição de lugares” (Jacques Rancière). Esta palavra ficção torna-se importante aqui ao entendermos o significado dela como uma organização artificial dos signos e das imagens, ou como diz o próprio Rancière, das relações entre o que se vê e o que se diz, ou o que se faz e o que se pode fazer. O que fazemos é dar a ver alguns caminhos possíveis.

Precisávamos estabelecer um acordo com o público: vamos combinar que a partir de agora, o que estava invisível passa a estar visível, que cinco pessoas atravessarem a rua olhando para cima ao mesmo tempo pode não ser coincidência, que não é toda hora que acontece um beijo no meio da faixa de pedestres. Vamos combinar que a menina de vermelho derrubar um isqueiro verde pode ser uma ação especial, que a moça que está ao seu lado se chama Ligia, que a música que vem da rua pode estar tocando para você.

O pacto de visibilidade é então a organização de caminhos possíveis, é a nossa partilha deste sensível. É a oportunidade de dar ferramentas para que esta experiência seja coletiva. É a nossa distribuição de lugares para criação de uma ficção. Nele você é convidado a abrir um buraco no espaço- tempo e passear com suas suposições, invenções e subjetividades e se relacionar com este contexto de maneira diferente. Uma idéia de se deixar guiar por uma subjetividade individual, ao invés da comum organização coletiva do espaço público. Uma proposição para sintonizar por um momento uma rádio pirata, em uma sintonia que geralmente você não encontra no seu dial.

Não é algo proposto para ser assistido, mas sim experienciado, preenchido e partilhado. A relação entre espectador e performer, observador e observado, se quebra para dar espaço a uma relação dúbia e multilateral. Quem observa, o que se observa e como se observa, é ambíguo, aberto e mutável. A co-habitação de uma experiência de perceber e ficcionalizar o aqui e agora.

Partindo disso construímos roteiros. Um destes roteiros se transformou num feitiço que aplicamos com uma periodicidade inconstante no Café Fingen, para um público desavisado, que é “laçado” (ou não) pela experiência.

O que chamamos de feitiço (adj. feito + iço. 1. artificial; 2. postiço; 3. fictício. 4. encanto, fascinação) é uma situação/evento construída com ações infiltradas, gerando pequenas ficções que se confundem com a realidade, ou propõem uma outra forma de observá-la e apreendê-la.

Os feitiços são feitos sem aviso prévio. A relação que estabelecemos com este público, que não carrega a “expectativa do espectador”, é da ordem da partilha, de uma partilha do sensível que se dá com a proximidade de quem pratica ações comuns e habita o mesmo espaço. O público que esbarra na experiência está livre, emancipado para embarcar nela, acompanhá-la por alguns minutos, ou ignorá-la por completo, deixando o café para continuar seus afazeres cotidianos.

A cada feitiço o contexto desta experiência é transformado em cartão postal, e oferecido como algo que pode se deslocar, multiplicar. As “paisagens” são o quadro de luz da praça, o cartaz com o menu do almoço na padaria do outro lado da rua, a porta espelhada do café. Nada de mais, não fossem alguns estranhamentos (quase possíveis), como o fato de cada postal conter uma repetição (quase idêntica) da imagem dentro dela mesma, dentro dela mesma, dentro dela mesma... Os cartões postais estão associados a idéia de uma passagem por um lugar, uma visita, um estar presente. São “imagens com verso” nas quais é possível escrever, anotar, enviar pelo correio...

Pouco a pouco vimos nossos desejos subversivos, desobedientes, e quase terroristas passarem do campo do ataque para o do convite. Convite para uma experiência sensível, um evento capaz de gerar uma fissura neste espaço/tempo, interrompendo seu continuum, reconfigurando tanto o contexto quanto os corpos que agem dentro dele. Os estados corporais que atingimos são estados de percepção e consciência – para o que acontece todos os dias, para o que pode ser diferente, para pequenas coincidências, para alguma fantasia...

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